“Comida diferente no beco, eu levo no beco”, cantou MC Levin na funky “Vai Pereca”.
A imagem de uma mulher fazendo sexo oral com um homem durante ou depois de dançar na favela é tão comum nas letras de funk quanto o adultério na literatura européia.
Enquanto os ouvintes de funk não estranham ao falar sobre a “besta do beco”, a visão de Anitta fazendo sexo oral na favela causou surpresa, mas também revolta.
Estou falando das fotos “vazadas” da última sexta-feira (27) da gravação de seu último clipe, que ainda não foi divulgado.
Após as fotos, Anitta voltou a ser assunto nas redes sociais. Vi muitas vozes críticas à cantora, que ganharam curtidas e compartilhamentos, vi aumentar o número de seguidores em perfis do Instagram que condenavam a encenação de Anitta.
Só de notar esse aumento “às custas dela” já me deixou desconfiado…
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As críticas me lembraram das tragédias gregas. Aquelas tragédias que falam de alguém que tenta fugir do destino, mas ao tentar fugir volta para ele.
Édipo foi informado de que estava destinado a matar seu pai e se casar com sua mãe. Ao tentar escapar desse futuro predestinado, ele fez exatamente o que period esperado. Ele matou seu pai e se casou com sua mãe.
A crítica trágica de Anitta tentou combater o preconceito, mas acabou reproduzindo o racismo, o machismo e também o moralismo.
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Vamos analisar algumas dessas críticas e entender porque Anitta é uma artista tão amada quanto ‘cancelada’. Anitta trabalha com contradições do sistema!
Comentário 1: “Anita reforça a imagem de favela hipersexual que contribui para o turismo sexual.”
Combater o turismo sexual é um objetivo legítimo e necessário. A luta contra o estereótipo (racista) da favela hipersexual é totalmente justificada e necessária! Mas atribuir problemas estruturais a uma pessoa (por mais influente que seja) para atacar seu trabalho inédito parece ser uma velha estratégia de usar o consenso ético para silenciar ainda mais as produções do funk. Algo como, “chega de funk porque as pessoas desse movimento são machistas, homofóbicas, objetificam as mulheres, romantizam o crime e sexualizam as crianças”.
Historicamente, essa crítica não tinha a intenção batermas lutar artistas de funk. Essa crítica também costuma vir de pessoas brancas na academia.
“Funkeiros não são bobos, sei que vocês não querem melhorar o mundo. Você só quer me calar”, penso toda vez que estou lidando com cientistas brancos “críticos” do funk.
Crítica 2: “Okay, mas e essa cultura pornô fundamentalmente sexista que objetifica a mulher que Anitta está usando para distribuir seus clipes?”
Muito antes de a objetificação dos corpos ser problematizada na pornografia, ela deveria ter sido problematizada no próprio capitalismo. O corpo, principalmente da mulher negra periférica, é visto apenas como força de trabalho. Ignorar o fato de que o capitalismo nos objetiva é uma estratégia neoliberal/ethical que problematiza a objetivação no sexo, mas não problematiza a objetivação no trabalho.
Crítica 3: “Ah, mas o sexo oral indica a submissão da mulher ao homem! Tudo que um homem ama!”
Encarar a cena do sexo oral como submissão ao homem é colocar o homem no centro do ato! Não é tudo sobre eles. Isso nos impede de ver o sexo oral como uma forma de prazer mútuo.
Mas concordo que a cena ficaria ainda mais questionável se o homem estivesse “chupando” Anitta.
Revisão 4: “É apenas pornografia para chamar a atenção”
Um homem branco de esquerda postou a seguinte frase em seu Instagram: “Feminismo sem luta de lessons é boquete em beco”. Este comentário mostra como a cena de sexo de Anitta é reduzida a um “produto pornô comercial desprovido de reflexão”, outra forma de dizer que pessoas como Anitta não pensam…
Reduzir a pornografia não é trabalhar com estética corporal e sexualidade periférica; é não reconhecer que há questionamentos morais e políticos. Reduzi-lo à pornografia ignora o fato de que usar os becos reflete a falta de dinheiro para um motel ou outro lugar adequado para fazer sexo. Reduzir a pornografia não é ver o trabalho de encenação como arte. E sabemos que a arte retrata sexo, nudez e “alimentação”.
Veja a famosa cena de sexo oral na Vila dos Misterios, por volta de 79 aC
Comentário 5: “Ah, mas a Anitta incentiva muitas meninas a fazerem o mesmo.”
Essa visão parte do pressuposto de que os jovens das favelas recebem e aceitam passivamente o que está nos clipes. Novamente, é como pensar que a favela não pensa! Claro que existe o impacto social da arte e a responsabilidade dos artistas, mas o mito da recepção passiva dos videoclipes é uma tentativa de censurar muito funk.
E sobre a censura, vale ressaltar que segundo o relatório Estado da Liberdade Artística 2018 Segundo o Free Muse, o Brasil é o quarto país com mais processos contra artistas do mundo, com 54% desses processos contra músicos.
Além disso, o que encoraja muito comportamento socialmente repreensível são as sensibilidades socioeconômicas… não o funk ou a Anitta.
Resenha 6: “Ah mas ela não precisa, ela já tem milhões de seguidores”
Sempre que falamos da Anitta, damos a ela exatamente o que ela quer: atenção e comprometimento com seu trabalho. O mundo da pop artwork é muito desrespeitoso com as pessoas. Existem muitos casos de artistas com milhares ou até milhões de seguidores que possuem pouquíssimo engajamento. Eles conseguiram e foram esquecidos. Algo muito well-liked no funk. Muitos são bem-sucedidos, poucos são bem-sucedidos. Anitta só joga muito bem o jogo, cujas regras não são dela, são do capitalismo.
E mesmo quem critica Anitta na hora certa também joga o jogo do mercado.
Revisão 7: “Isso é péssimo”
Muitos críticos continuaram trazendo à tona os adjetivos “terríveis”, “ruins” e “maus”. Mas não se faz uma análise mais científica com esses adjetivos, que não podem ser explicados e disfarçados pela branca dificuldade de lidar com o Funk.
O trabalho de Anitta exige menos julgamento e mais trabalho analítico.
Apresentar essa perspectiva não significa entregar a tela para Anitta. A crítica que podemos fazer a ele está no individualismo. O que a favela ganha com tudo isso?
Por trás da caçada a tal condenação está a atitude mesquinha de quem cospe no prato que come… Afinal, toda a discussão foi provocada pelo próprio trabalho de Anitta. Quem cria conteúdo precisa se envolver com ele.
“Cuspir no prato” não! Para fazer jus à cena de Anitta, a melhor metáfora seria “cuspir leite materno”.
*Thiagson é musicólogo, professor de música, doutorando em música pela USP, YouTuber, defensor da música periférica e autor de livros de música.
**Este é um artigo de opinião. A opinião do autor não representa necessariamente a linha editorial do jornal na verdade brasil.
Edição: Vivian Virissimo